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CAMPO & CIDADE

Legado de Agnor - Onévio Zabot

  • - Onévio Zabot - Engenheiro agrônomo e servidor de carreira da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) - Membro da Academia Joinvilense de Letras

De saudosa memória - Agnor Bicalho, popular Parafuso -, foi dessas personalidades marcantes - espécie de estrela-guia. Adorava a sua irreverência, mas sobretudo a sua coerência. Lutou a vida toda pela reforma agrária. Embora a sua aparente simplicidade foi um dos idealizadores e fundadores do Movimento dos Sem Terra (MST). Paranaense de Alto Piquiri, viveu na, hoje, pujante Araquari, litoral norte catarinense. Ali, com a família, numa pequena chácara, produzia hortaliças. Produção de qualidade, ofício herdado pelos filhos. O orgulho, a filha médica.

Viajado, esteve no México, na Suíça e em Cuba proferindo palestras. Mantinha sempre a mesma serenidade, não importava o público, se composto por trabalhadores ou intelectuais. Percebi isso nas reuniões com pescadores em Itapoá. Suas glebas estavam sendo apropriadas por especuladores. Parafuso, obstinadamente, empenhou-se em defende-los.

Nos conhecemos por acaso, num debate político em Florianópolis (1980). Entre os presentes Osmar Cunha que fora o prefeito mais jovem eleito na capital. Na época, recém formado em agronomia, nos identificamos. Também lutava pela reforma agrária e inclusão social. Particularmente, admirava o posicionamento do velho líder comunista João Amazonas, as três bandeiras que empunhava: 1) contra toda a forma de monopólio; 2) contra o latifúndio improdutivo; e 3) contra imperialismo americano. Bandeiras ousadas e até atuais, diga-se de passagem.

Carlos Lacerda, renomado político carioca, também deixou sua marca de irreverência. Embora escritor de nomeada, relegou este dom. Ousou na política, onde revelou-se orador um contundente. Polêmico, não poupava os adversários com agudas catilinárias. Comunista na juventude, liberal na idade madura. Sua máxima: - "Aos 20 anos todos somos comunistas; aos 60, conservadores.

Vez por outra Parafuso aparecia no escritório da Epagri, além buscar informações técnicas, oferecia as assinaturas do Jornal e da Revista do MST. Ambos por sinal de excelente padrão. Textos esclarecedores. Chamavam a atenção os poemas escritos por aquela brava gente.

Parafuso, embora sua convicção socialista, surpreendia, pois era aberto ao diálogo. Sabia ouvir os que divergiam. Tolerante, possuía dotes de estadista: virtude presente em todo o bom camponês.

Nossas conversas sempre iam longe. Francas e sinceras. O tempo havia me ensinado que não bastava a reforma agrária pela reforma agrária, mas sim, a tecnologia e os investimentos. E, é claro, muita capacitação dos empreendedores. O valor da terra , portanto, passará a ser secundário. E os com terra - especialmente o modelo familiar - e os próprios assentados -, careciam de mais apoio. Apoio conquistado à duras pena com o Programa de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF), uma conquista do sindicalismo rural (1991).

No momento em que estamos vivendo, momento de entrechoques e intolerância, comprometemos um dos principais valores de uma sociedade aberta: a capacidade de dialogar, de ouvir o interlocutor, mesmo com posições antagônicas.

Aprendi muito cedo que do choque dos contrários, embora o aparente calor, surge o discernimento. A luz. Tese, antítese e síntese, a seu tempo, ondulações pendulares - a essência da arte de dialogar.

Os ingleses preconizam isso. Exercitam o contraditório, uma espécie de pedagogia da superação. Quando o tema é polêmico selecionam quatro indivíduos. Estes devem estuda-lo em profundidade. Desnudá-lo. Uma vez preparados, por sorteio, dois devem defender um lado, e os outros dois contrapor-se, independentemente da posição ideológica dos protagonistas. 


Na Idade Média a apriorística preconizava algo semelhante. O intenso debate, com respeito e regras definidas. Os judeus utilizam outra técnica. Enquanto houver dúvidas sobre um determinado tema há que se buscar dirimi-las. Chutzpath, a prática.

E Voltaire, com outras palavras, afirmava: - Todos tem o direito de pensar e manifestar suas opiniões - e devem ser respeitados por isso -, mas concordar com as mesmas, essa é outra história.

É de Milan Kundera - autor de A Insustentável Leveza do Ser -, esta pérola: - "O homem deseja um mundo onde o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, pois existe a vontade inata de julgar antes de compreender, sobre essa vontade estão fundadas as religiões e as ideologias".

 Parafuso marcou-me, seja pela personalidade cativante, seja pela coerência, mas sobretudo porque compreendia que a terra há que ser produtiva, e que para produzir é preciso investimento, muita ciência e tecnologia. Praticava isso na sua chácara, produtiva que era. Infelizmente, o MST nem sempre entendeu isso. Extrapolou, ao ocupar terras produtivas; mas acertou quanto aos assentamentos em latifúndios improdutivos.

  De resto, a grande lição: somente construímos uma sociedade melhor, mais justa e mais humana, com muito diálogo e respeito. E isso vale para todos, não importa a ideologia.

                                                                                                Joinville, junho de 2021

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