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CAMPO & CIDADE

Déjà Vu - Terra abençoada - Onévio Zabot

  • - Onévio Zabot - Engenheiro agrônomo e servidor de carreira da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) - Membro da Academia Joinvilense de Letras

Circulava por terras paulistas e, em seguida, paranaenses. De bate-pronto a Rodovia Regis Bitencourt, litoral. Trânsito infernal. Caminhões às pencas.  Carros à rodo. Pardais. Lombadas eletrônicas. Trânsito truncado. Por trás da aparente segurança, a voracidade da indústria da multa. Sede arrecadatória. Pedágios e mais pedágios. Valores nada modestos.
 Cruzo por Eldorado, entre tantos benfazejos povoados, Vale do Ribeira, hoje, terra de presidente. Bolsonaro passou sua juventude ali. E que coincidência: naquele momento, entregava escrituras, terra para assentados em Miracatu, proximidades.
O destino da viagem, São Roque. Moacir, mano de guerra, mora por lá.  Cidade enigmática, surgiu no rastro da sorocabana, estrada de ferro. A antiga estação, incólume e altaneira, projeta-se no espaço e no tempo. Restaurada e bem cuidada, bela atração turística. Ícone à vista.

A Maria Fumaça ali estacionada não nega as raízes. A carga de lenha exposta aguarda o senhor da fornalha, o foguista.
É outra, no entanto, a São Roque verdadeira. Terra do vinho. Roteiro do vinho. Tentação. Quinta do Olivardo, põe capricho. Parreiral impecável. Alinhado. Há outras, muitas outras vinícolas no roteiro.  Todas requintadas. A Goes sobressai, anos de estrada. Novos tempos, no entanto, se apresentam. Não os vinhos de outrora que adentravam nos grotões. Arrepios à solta.  Quem abusava, o preço a pagar: dor de cabeça, olhos avermelhados de lobisomem em noite de lua cheia.  Noites em claro. João Fachin, de saudosa memória, apreciador inveterado que o diga.
Adiante, uma preciosidade: Morro do Saboó. Cume turístico. No entorno, vegetação raquítica, típica do cerrado: cambarás em abundância, árvores tortas, retorcidas.  Capins rabugentos.

Mano, mora por ali, fundão de mundo-além. "O que é de gosto, regala a vida", diz o jargão popular. O solo siltoso, rochas quartzosas em adiantado estágio de desagregação, fruto do intemperismo. Pedregulho solto.   Camadas prensadas revelam digitais, desenho das Eras geológicas.  Frutíferas introduzidas crescem com vigor, percebe-se. Mas os jatobás, nativos, coalhados de frutos, dão charme inusitado à paisagem. Gabirobeiras, mangavas, bacoparis e cedros despontam.

Ah, uma curiosidade: a palavra saboó provém do Tupy antigo, significa arranca-raízes, junção de sapó, raiz; e po'o, arrancar. O morro:  vegetação escassa, alcantilado. Alto. Ali religiosos seguidores do pastor Valdomiro, o homem do chapéu, realizam cultos místicos. No entorno, nascentes abundam, águas cristalinas à mão cheia. Benção divina para fausto da flora e fauna e dos incautos moradores. Moradias simples, mas de gente feliz, inclusive para Paloma, menina alegre e faceira, neta de Moacir e Zelli, avós corujas.    Único senão: as queimadas, prática imprópria, mas bastante comum. A encosta acinzentada, repletas de árvores estorricadas revela o que restou da exuberante vegetação:  
esquálidas galhadas.  Cenário de guerra ou por outra, desleixo.

Dali, cumprida a missão, rumo para a região noroeste paranaense, mais precisamente para Iporã - água bonita na língua indígena. No trajeto - que grata surpresa(!) -, percebe-se a pujança do agro. E agro sem chuva não é agro. É agonia.   Depois de uma longa estiagem, enfim a abençoada chuva. Rega os campos na hora certa. Hora do plantio, de revegetar os campos. Semeadoras cobrem os campos de grãos. Soja, o ouro amarelo baixa à boa terra. Esperança de safra cheia. Canaviais também se dobravam ao largo.  Onda verde a perder de vista. Vem-me à mente o poeta João Cabral de Melo Neto. No livro: Educação Pela Pedra; o poema:  O Mar e o Canavial. "O que o mar sim aprende do canavial:/a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, /narrada em voz e silêncio paralelo".

Cruzar de carro aquele mundão, um senhor desafio. Rodovia Raposo Tavares, trecho da Transbrasiliana e por aí afora. Conexões, trevos e rótulas, infindáveis labirintos.
Londrina, Maringá, Umuarama, a espinha dorsal. Referência. Núcleos cosmopolitas. Cidades outras avizinham-nas, mas não menos importantes; bucólicas, mas, vibrantes.  Satélites da esperança, diria meu amigo Franklin.
No campo, embora a pujança - cá entre nós -, há um vazio de fazer dó, vazio deixado pelos cafezais, outrora abundantes. Escafederam-se os soldados verdes, soldados de Cassiano Ricardo, o poeta da cordialidade. Atraiam mão-de-obra por excelência as lavouras de café. Obreiros na colheita. Gente alegre. Bagas vermelhas. Derriça. Peneiração. Terços e bailões na beira da tuia.  Festança boa demais, embora as agruras do ofício.

Com o fim deste ciclo virtuoso ocorreu um êxodo descomunal. Novas fronteiras agrícolas foram desbravadas. Mato Grosso. Rondônia.   Outros, desiludidos, atraídos pelas luzes da ribalta, migraram para São Paulo ou Curitiba e adjacências. Entre os relegados, há que permaneceram por ali entregues à própria sorte.
O motivo da viagem: em Iporã passei boa parte de minha infância. Diria mesmo os melhores dias. E o livro Geada, Café e Viola - Retrato de Uma Época -, acabara de ser publicado. E, como aborda fatos e personagens da singela localidade, nada melhor do que entregá-lo pessoalmente. A quem entregar, eis a questão. Melhor começar pela tradicional Rádio Cultura. Coisa de 7 horas da matina bato à porta da emissora. Simpático radialista - depois fiquei sabendo chamar-se Gilmar Gil -, ao tomar conhecimento de minha intenção convida-me para uma entrevista um pouco mais tarde, as onze horas.  Melhor largada impossível, penso cá com meus botões.  

Ganhando tempo dirijo-me ao Escola Nossa Senhora Aparecida, antes educandário. Alunos achegam-se àquela hora. Outros brincam no pátio.  Percebo que o prédio conserva traços originais. Tudo Madeira de primeira. Tábuas de peroba da melhor qualidade.  O ambiente interno, um oásis. Arborizado, charmoso mesmo. Pergunto pela diretora. Quem me atende amistosamente são as Irmãs Hilda Stefani e Ida Lorenzato, simpáticas freiras da ordem da Imaculado Coração de Maria. A prosa vai longe. Descontraída. As professoras: Alessandra Beltramin e Sueli Sanches Maia, eufóricas, regozijam-se, pois, uma aluna foi premiada, tendo livro publicado. A surpresa: o Jornal: Coração Aberto, editado pela escola, reúne informações e notícias.  Presenteiam-me com algumas edições. Na praça por 16 anos, é referência.
Confesso que foi extremamente gratificante constatar o ótimo visual da escola. Que capricho! Que bom gosto! Quanto ao florido flamboyant no pátio, a Irmã Hilda faz questão de frisar: é da terceira geração.

Hoje, a escola dedica-se à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, destaca Irmã Ida.  Evoquei os bons tempos, a madre Lúcia Sangoi, pioneira. O padre Milvo e suas aulas de matemática. Na saída quase dou vexame. Ao retornar para solicitar a liberação do portão, a derrapada. Vou ao chão. Contudo, como sou praticante de artes marciais: judô; dou a volta por cima. Apenas um susto. Nada mais, mas o suficiente para receber a devida atenção dos presentes.  
Prosseguindo o périplo, acesso à Casa Paroquial ao lado da escola.  Faço questão de entregar exemplares do livro ao padre Jailson João Silva, pároco local. Os sacerdotes, assim como as irmãs foram marcantes na minha formação e, em especial, na história do município. Vem-me à memória o nome dos padres:  José Stefanello, Genésio Bonfada e Milvo Alberti, e da Irmã Lucia Sangoi. Ah, registre-se: a Igreja matriz, hoje Santuário Santo Antônio, inspira-me, pois ali fiz a primeira comunhão.

Não podia, porém, deixar de passar na Câmara de Vereadores e na prefeitura municipal. Exemplares dos livros foram entregues. Na Câmara Roberto, secretário geral, solicita que um exemplar autografado. Informa que sua filha aprecia a leitura.  O presidente do poder legislativo, vereador Edmilson, agradece em nome dos colegas a oportunidade de receber os livros. Exemplares, destinados ao prefeito Sérgio Borges são entregues ao chefe do gabinete.  Mais uma etapa cumprida.

Dali, dirijo-me à Casa da Cultura. Instalações recentes, arquitetura moderna.  Recebido pela diretora Beatriz, ao saber de meu propósito informa que a cidade comemorou 61 anos de emancipação no último dia 12 de outubro, e entre os atos solenes, uma a exposição de fotos e utensílios antigos, assim como de desenhos de alunos da rede municipal de ensino se encontravam expostos.  Pinturas de indígenas, os Xetás, que povoaram a região, despontavam no room de entrada. Auditório amplo, o local transpira cultura. Fico pensando: tudo começa por aqui. Que maravilha!

Beatriz faz questão que visite o fotográfico e produtor de vídeos Fauezi Darab. Ao encontra-lo, esbanja simpatia; informa que vem resgatando personagens históricos do município. Entusiasta mostra alguns vídeos, entre os quais um sobre o patriarca da família Botura. Comovente o relato daquele pioneiro. Ao entregar-lhe o livro reporto-me à família Assis. Fui contemporâneo de Moises Assis, colega de aula. Em priscas eras apelidou-me de Lourenço da Arábia. Só mais tarde vim a saber da história desse lendário personagem britânico. Fauezi batalha para criar uma espécie de Arquivo Histórico, sem dúvida uma iniciativa louvável.  Afinal, povo sem memória não preserva a história. Resgatar, preservar e promover fatos e personagens é, certamente, um senhor desafio para o inveterado Fauezi.

Por fim, a entrevista na rádio Cultura. Boas lembranças de Arlindo Pereira da Silva, primeiro comunicador da cidade. A partir de uma rede alto-falantes migra para a emissora de rádio. Isso há 43 anos atrás.  Gilmar Gil e Rose Alves dirigem um programa de larga audiência. Combinamos sortear alguns livros. Após as considerações iniciais, a entrevista. Repercutiu: sorteamos dez exemplares. Vários ouvintes fizeram contato, disseram conhecer meus país, especialmente Julieta, minha mãe, devota que era. E Gilmar reportando-se aos pioneiros, aos desbravadores, evocou a figura de João Picadeiro.

Iporã, década de 1950, não faltavam picadas. Algumas traçadas a partir do Norte, a maioria e, outras, do sul. No Sul destacou-se a figura de João Picadeiro, segundo Gilmar Gil. Picadeiro porque abria picadas. Iniciava-se assim a colonização de Gleba Atlântida pela SINOP (Sociedade Imobiliária do Noroeste Paranaense) tendo como protagonistas Ênio Pepino e João Pedro Moreira de Carvalho. Papai, Armindo Pedro Zabot, provindo de Herval d'Oeste, Santa Catarina; adentrou em Iporã em 1958.

À tarde fui até a estrada Flórida, lugar da segunda morada, a primeira fora na estrada Estiva. Confesso, fiquei chocado com o cenário. Pasto e lavoura. Lavoura e pasto. Tudo muito bonito, mas monótono. Foi-se o calor humano d'outrora, percebo a olhos vistos.   As duas vendinhas próximas da Capela Vicente Pallotti sucumbiram. Ainda bem que restou a outra, na estrada Elizabete. E a estrada Flórida?  A estrada, talvez em razão das fortes chuvas do dia anterior, simplesmente estava intransitável. Carne de pescoço. Insisto, porém. Do velho sítio, outrora pujante, apenas capim. Nelores pastejando. Residência nenhuma. Lágrimas correm no rosto. Dor no peito. Saudade danada roendo, roendo. Tudo se foi para sempre. Restaram intactos apenas dois bosques: um na propriedade Afonso Peres e outro na de Luciro Santana. Nada mais. O pequeno rio Sarandi, outrora pujante, encolhido corcoveava vagando entre as macegas. E o distrito de Oroite, então... bucólica vila, entregue à própria sorte, resignado, encolheu.  Casario antigo. Veias expostas. Evoca "As cidades Mortas" de Monteiro Lobato, vale do paraíba. Inquirindo por atividades que mais empregam no município, informou-me o dono um bar de forma categórica: a prefeitura.
Geada, Café e Viola - Retrato de Uma Época - bem expressa esse rearranjo territorial, o fim do ciclo do café, e a emergência de um novo ciclo - o agro.  Ciclo este que não se basta, pois ao campo cabem outras vocações, além de produzir alimentos. Espaço de lazer, produção de água e energia, eis um novo nicho a ser prospectado.
Registre-se, a bem da verdade, antes disso, Nilda Buganeme Antoniassi recebera via correio outros livros, entre os quais: Redescobrindo o Campo, obra que trata das transformações no mundo rural. Das novas ruralidades.  Está na biblioteca pública para quem desejar lê-la.  Fiquei devendo algumas visitas que espero, em breve, ao retornar, concretizá-la especialmente às famílias de Rosalvo Vieira e Adiba Buganeme.  

De coração partido, segui adiante. A alegria, alegria mesmo foi reencontrar pessoas amáveis. Pessoas como Rosana Pereira da Silva, colega de turma, filha de Arlindo Pereira da Silva, eleito o Pai da Comunicação na cidade. Por fim, demais a mais -   déjà vu -, querida terra de minha infância.
                                                             Iporã, 18 de outubro de 2021




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