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Cidades

SFS: UFSC e comunidade sugerem criação de Refúgio de Vida Silvestre no Distrito do Saí

  • Fernando Farias - Caneleiro bordado: espécie foi vista pela primeira vez e indica o quanto a mata pode ter riquezas desconhecidas

Por dentro das matas no alto de um morro no Litoral Norte de Santa Catarina, um pequeno caneleiro-bordado está pronto para desbravar um mundo novo. Poderia ser personagem de um desenho animado, mas é uma ave observada pela primeira vez em um Estado onde não costuma ser vista. A região escolhida é cheia de características atrativas: com espécies diversificadas e água em abundância, deve se tornar a primeira unidade de conservação da parte continental de São Francisco do Sul, por recomendação de um extenso trabalho que uniu a ciência e as comunidades do Distrito do Saí.

A parceria começou após a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ser contratada pela Prefeitura de São Francisco do Sul para estudar a região. Os recursos vieram como parte de uma multa recolhida pelo Ministério Público Federal e foram aplicados para que se analisasse as características para a criação de uma unidade de conservação municipal, em um polígono previamente estabelecido. O estudo resultou em um relatório com mais de 700 páginas, que organiza o conhecimento sobre aspectos como a hidrologia, a geologia, a fauna e a flora da região e ainda apresenta um histórico socioantropológico da área, recomendada para ser um Refúgio de Vida Silvestre.

O Projeto Nascentes do Saí traça uma imagem panorâmica e também o raio-x de um lugar repleto de particularidades, que tem urgência na preservação da sua biodiversidade e também pode servir como ponto de turismo ecológico por conta de suas características. O território do Distrito do Saí possui 116 km2, água, floresta e animais em abundância e um patrimônio cultural cheio de histórias. Transformá-lo em unidade de conservação vai contribuir com a proteção e exploração sustentável dos seus encantos turísticos.

A ideia de criar a primeira unidade de conservação de proteção integral na região tem uma importância adicional: somado às outras áreas protegidas do entorno, esse polígono seria uma espécie de corredor ecológico e garantiria mais trocas genéticas nas populações de animais ou de plantas que vivem em outras reservas. "É importante que haja muita unidade de conservação para que haja conexão entre os diferentes fragmentos, para que as espécies possam circular entre as áreas, tendo essa facilidade para o fluxo genético", reforça Rodrigo.

Dentro do próprio bioma de Mata Atlântica, explica o professor, foram criadas inúmeras reservas, parte delas na região Sul - e a mais importante hoje denominada Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. "No Norte, há áreas de serra do mar, nas regiões de Joinville, Campo Alegre, Garuva, São Chico. Ali há uma grande indicação da importância e da biodiversidade nessas áreas, balizadas pela Unesco", comenta. A região de São Francisco do Sul, desde os anos 2000, é reconhecida como altamente importante, mas ainda não tem uma unidade de conservação em sua área continental.

Hoje, a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA), a primeira criada no Brasil, passou por diversas ampliações. De acordo com informações da Unesco, ela cobre porções territoriais de vegetação de Mata Atlântica ao longo de 89.687.000 hectares. Isso forma um corredor ecológico por 17 estados, incluindo Santa Catarina. A RBMA é a maior e uma das mais importantes unidades da Rede Mundial da Unesco.

Segundo Ferretti, a proposta de criação de uma unidade no local remonta à década de 1980, quando a Unesco criou o conceito de Reserva da Biosfera, com o objetivo de dar sustentação à preservação dos diferentes biomas espalhados pelo mundo. No Brasil, esse processo se estendeu entre final de 1990 e início de 2000, onde se estabeleceram as possíveis reservas para as áreas de Mata Atlântica. "Foi uma designação muito mais de uma política internacional, de observar nos diferentes biomas quais as áreas que deveriam ser mais cuidadas e ter mais trabalhos científicos e áreas protegidas", contextualiza.

O polígono inicialmente delimitado pela prefeitura transformou-se em uma área maior, de aproximadamente 6.702 hectares, segundo explica o professor Orlando Ferretti, responsável pela caracterização geográfica. O traçado passou a abranger, também, áreas de maiores altitudes, na divisa com Itapoá e Garuva, onde não há ocupação, mas há floresta.


Coordenadoria de Design e Programação Visual / Agecom/


De início, não foi um processo fácil, pois, no senso comum, unidades de conservação costumam ser temidas por, em alguns casos, enrijecerem determinadas regras de ocupação. Mas mesmo com uma pandemia imprevista pelo caminho, a equipe conseguiu construir, com base no diálogo, uma proposta e uma minuta de lei para criar o que se denomina Refúgio da Vida Silvestre.

"A região de morros do Distrito do Saí nos surpreendeu com a sua riqueza de espécies, tanto de flora, como de fauna. É um remanescente de Mata Atlântica muito importante para o Estado, tendo a sua maior parte em estágio avançado de regeneração, além de ser fundamental para a segurança hídrica do município por causa dos seus mananciais", explica o professor Rodrigo de Almeida Mohedano, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental e coordenador do projeto. "Além dessa tomada de informações, de dados, o projeto é pautado em um processo de governança com a comunidade, porque entendemos que essas ações muito verticais, de cima para baixo, não têm muita efetividade. É preciso que a comunidade participe desde o começo", contextualiza o professor.

O professor Ferretti também reforça a possibilidade de uma nova reserva se agregar a um chamado mosaico de áreas protegidas, que garante uma maior cobertura de proteção legal, com uma intensa variedade de ambientes, tais como serra e planície, por exemplo. Isso possibilita que haja ligação possível com corredores, seja pela água, seja pela terra, fazendo com que os animais façam a passagem de um ponto a outro. "É urgente a criação de unidades também para não isolar esses animais", pontua.

Segundo o professor Rodrigo, o Núcleo de Educação Ambiental (NEAmb) foi um dos vértices de todo esse processo. Além de já ter, no histórico, a execução de um trabalho semelhante, realizado na cidade de Itapema, o NEAmb potencializou conhecimentos multidisciplinares para o estudo. "O nosso diferencial foi trabalhar com as comunidades, empoderar a comunidade com conhecimento e incluí-la no processo, com metodologias de educação ambiental e de governança".

A proposta de unir os saberes locais da comunidade e os saberes técnicos que a equipe da UFSC propunha fez com o que o projeto Nascentes do Saí fosse um trabalho coletivo. "Não adianta vir alguém de fora, da universidade ou do poder público e impor a criação de uma Unidade de Conservação, pois sem a apropriação desta pela comunidade, ela ficaria apenas no papel", destaca Luiz Gabriel Catoira Vasconcelos, responsável pela governança. "O conceito de governança que trazemos do professor Daniel Silva é justamente esse: aumentar a capacidade das comunidades de participar da gestão do seu território e seus bens comuns".

O pesquisador lembra que foi um desafio romper as opiniões pré-estabelecidas, já que muitos moradores identificavam o projeto como uma espécie de inimigo. A falta de confiança no poder público e até mesmo um preconceito com iniciativas ambientais são apontados como duas das possíveis causas desse afastamento inicial. "A efetividade da gestão de bens comuns como as águas, florestas e o meio ambiente equilibrado depende da existência de diálogo e cooperação entre todos atores envolvidos. Do contrário, a competição individualista leva à intensificação da degradação e eventualmente a um colapso irreversível", aponta.

UFSC-Divulgação/Equipe de pesquisa em ação

Justamente por isso, a equipe buscou cultivar e construir relações de confiança. A comunidade foi chamada a participar desde o primeiro momento, em conversas, depois em grupos virtuais, por conta da pandemia, e também nas três audiências públicas executadas para apresentar o que estava sendo coletado e ouvir o que os moradores tinham a dizer. As oficinas de construção participativa da proposta da Unidade de Conservação colocaram em diálogo pessoas com concepções divergentes trabalhando de modo cooperativo.

"Certamente a participação de cada um enriqueceu o processo e contribuiu para a qualidade e legitimidade das decisões tomadas. Mais do que isso, foi um alento de que ainda pode ser possível regenerar a capacidade de diálogo e cooperação em nossa sociedade", pontua Vasconcelos, que viu a comunidade exercer a autonomia para a proposição da categoria Refúgio de Vida Silvestre, uma recomendação coletiva, que conciliou os saberes técnicos da equipe da UFSC com os interesses e saberes da comunidade. "É claro que também houve os momentos objetivos e metodológicos das oficinas, mas eles foram resultado de meses de escuta, conversa, afeto e perseverança no diálogo, especialmente quando este era mais difícil".

Proteção também à cultura e às tradições

A comunidade, ativamente participante das decisões sobre a unidade de conservação do Distrito do Saí, também integrou o projeto em outra frente: compartilhando suas memórias, contando suas histórias e apresentando suas práticas, o que permitiu à equipe da UFSC realizar um inventário socioantropológico da região. Para a pesquisadora Elis do Nascimento Silva, coordenadora do estudo, é importante considerar que a criação de uma UC em um território não envolve apenas a proteção do ambiente natural e sua biodiversidade, mas articula-se também com a vida dos povos e comunidades.

"A abordagem sociológica, histórica e antropológica se faz necessária desde o momento inicial do estudo e dos levantamentos dos dados primários e secundários que nos permitem compreender o histórico de ocupação da região, as atividades e práticas produtivas das comunidades que dependem das áreas destinadas à criação da UC e, sobretudo, os vínculos afetivos e modos tradicionais das pessoas interagirem com esses ambientes há algumas gerações", resume Elis.

Uma das coisas que mais chamou a atenção da equipe foi a riqueza do histórico de ocupação naquela área, desde o período pré-colonial, sinalizada pelos vestígios dos sambaquis, que comprovam que existe a presença humana na região há pelo menos 6.000 anos antes do presente.

UFSC - Divulgação/Entrevistas fizeram parte do levantamento realizado pela UFSC

Há outros pontos da história que mereceram o registro atento das pesquisadoras da UFSC como parte do esforço de registrar as memórias e os acontecimentos da comunidade: a chegada dos franceses em 1504 e a experiência do Falanstério do Saí em 1842 para implantação de um sistema coletivista de trabalho baseada na livre associação e cooperativismo, por exemplo, também é um momento que diferencia o Distrito do Saí de outras áreas. Outras heranças socioculturais são atribuídas à presença histórica do povo Guarani, dos portugueses, espanhóis, alemães e dos afrodescendentes escravizados.

O reconhecimento e a valorização da pesca artesanal como um importante patrimônio cultural imaterial do Distrito do Saí é outro destaque que a pesquisadora faz ao estudo. De acordo com ela, mesmo com um certo enfraquecimento da prática desta atividade entre as novas gerações, trata-se de uma tradição do lugar que está presente na memória da maioria das famílias. "Relacionada à pesca artesanal, também estão a cultura dos engenhos de farinha e as festividades - tradicionais e contemporâneas - que são celebradas atualmente no Distrito do Saí, como a Festa da Nossa Senhora da Glória e a Festa do Camarão", pontua.

Para Elis, a existência de uma unidade de conservação no Distrito pode envolver ainda mais a comunidade ao território, sendo capaz de fortalecer a identidade cultural e gerar um sentimento de pertencimento por conta da valorização da biodiversidade por parte do poder público e dos turistas. "Com a criação da UC, prevemos que ela poderá ser mais um atrativo turístico para a região e que, a partir do interesse e organização da comunidade, seus patrimônios culturais materiais e imateriais podem ser melhor geridos e valorizados como potenciais do Distrito do Saí, não só histórico-culturais mas também movimentando ainda mais a economia local", acrescenta a pesquisadora.

Acervo do projeto/Trabalho com a comunidade começou antes da pandemia






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